Alejandro Gómez
No Brasil chegou-se a uma situação que desmente categoricamente a tese do fim das ideologias
Em 5 de abril, logo após a negação por parte do Supremo Tribunal Federal do habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, o juiz Moro ordenou sua detenção. Chega-se assim ao desenlace de uma obra dantesca iniciada há vários anos atrás, com a apertada vitória de Dilma Roussef nas eleições para seu segundo mandato. Chega-se assim a uma situação que desmente categoricamente a tese do fim das ideologias, e que nossas direitas regionais hasteiam ante cada microfone que se lhes apresente.
Eterno retorno da luta de classes
"Querido Lula: as classes sociais existem"[1], começa a breve mas contundente carta que Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, escreveu a Lula nestas horas agitadas, ridículas e trágicas. Ante a onda de restauração conservadora e neoliberal, e o ressurgir da teoria de que não existem esquerdas e nem direitas, e de que os problemas sociais são somente fruto da corrupção ou se reduzem a questões de gestão empresarial, esta afirmação de Mujica se torna essencial e necessária.
O que coloca claramente de manifesto no caso brasileiro é a existência das classes sociais, e a presença de antagonismos irreconciliáveis. O que reflete por trás da campanha encarniçada contra Lula é a aliança das classes dominantes em seguida cortar pela raiz a possibilidade, clara, do retorno ao poder do ex-presidente. Nestes últimos anos viu-se como no Brasil os meios de comunicação monopolizados pela Rede Globo, o setor industrial, o financeiro e o partido militar, cerraram fileiras em torno deste objetivo. A destituição de Dilma e a queda de seu governo, vítima também de numerosos erros internos, não eram o fim deste projeto, mas sim um elo a mais. A meta da direita brasileira sempre foi cassar Lula.
Por que? Porque na figura de Lula se encarna o projeto que começou a reverter a história do país mais injusto e desigual da América Latina, projeto que tirou quase 40 milhões de brasileiros e brasileiras da pobreza, que permitiu processos de mobilidade social, que democratizou o acesso à educação, possibilitando o ingresso pela primeira vez de setores excluídos e historicamente discriminados, às universidades. Como assinala Alejandro Grimson em seu artigo de Anfibia[2], Lula foi o responsável de tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU.
As classes existem, como encabeça a carta Mujica, talvez com a clareza que outorga toda uma vida de luta e andar por essa rota. E no Brasil, a classe dominante faz sentir seu peso nestas horas ao proclamar em cada ato que o governo do PT foi um acidente na longa história de desigualdade do país irmão, e que esse acidente deve corrigir-se e apagar-se da memória. Os privilégios não podem voltar a serem questionados, a riqueza não pode voltar a ser redistribuída de forma um pouco mais justa (um pouco, porque esses setores nunca perderam recursos nem muito menos); os dominados devem voltar a seu lugar de subalternidade. E neste afã, as classes dominantes brasileiras demonstraram que estão dispostas a tudo, inclusive a tirar de si mesmas o último e gasto disfarce de democratas.
A pergunta pela Democracia
Porque estes momentos do Brasil levam a perguntar-se pelo conceito de democracia e que é o que define um governo ou classe social como tal. Alcança em chegar ao poder mediante o voto popular? Em manter as "formas" republicanas? É um estado que uma vez conseguido se mantém no tempo, ou é o acaso da democracia algo distinto, uma prática e que como toda prática deve exercitar-se diariamente, ante cada situação ou ato de governo?
Caracterizar a situação do Brasil pode ajudar a responder estas interrogações. Quem hoje governa não chegou através do voto, mas mediante o recurso "constitucional" de destituir Dilma Roussef via processo judicial político. Mas até ali o institucional, já que o processo se desenvolveu sem provas e sob pressão constante dos meios de comunicação. Temer parece então com um presidente sem legitimidade e sem apoio social. Uma vez conseguido esse primeiro objetivo, se lançou a campanha judicial contra Lula. O poder judicial, uma casta senhorial herdeira de outros tempos históricos, se põe a serviço da perseguição de opositores apenas pelo fato de serem opositores; as provas e os fatos não tem vez nessa encenação. Assim, Lula é condenado num processo sem provas. E encerra a saga o voto e a alegação da juíza Rosa Weber que rechaçou o habeas-corpus, desempatando a votação em 6 a 5. Ali se liquidou a doutrina da presunção de inocência, substituindo-a pela presunção da culpalidade, ao votar por "convicções", esclarecendo que poderia rever sua posição se chegassem provas da inocência do ex-presidente. Assim, não é já a culpalidade a que deve ser demonstrada, mas sim a inocência: todo adversário político é culpado até que se demonstre o contrário, pareceria ser a máxima.
Com esta cadeia de fatos, pode-se questionar a qualidade democrática do governo e das instituições brasileiras. Não alcança com a aparência dos lugares comuns, a "separação" de poderes, a imprensa "livre". Há que se questionar as práticas nas quais essa democracia se desenrola. E neste caso o resultado desse questionamento mostra um sistema opressivo e repressivo, que persegue os opositores através dos meios de comunicação e os juízes, enquanto aplica um brutal ajuste sobre os setores médios e populares, enquanto se ataca o trabalho através da instauração das leis mais retrógradas de toda a região. A Democracia deve ser articulada com práticas democráticas reais e não só de nome.
Pode sustentar-se que este sistema é o que busca consolidar-se através da perseguição a Lula, cerceando com o cárcere a possibilidade de apresentar-se às eleições. Mas o banimento que se busca é mais amplo, as classes dominantes brasileiras buscam banir através da figura de Lula a imensa população humilde, popular, aos setores subalternos que a princípios do século XXI viram melhoras reais em sua qualidade de vida e em seus espaços de participação e representação; essa experiência é a que se busca banir ao perseguir Lula.
Neste contexto trágico e de extrema complexidade, restar ver qual será a reação dessas classes populares, com suas matizes, diferenças e complexidades. Resta ver que capacidade de articular-se em torno de seus pontos comuns, a sua posição de classe oprimida, poderão desenvolver para fazer frente a uma aliança dominante que aparece como um bloco em proveito de seu objetivo central. Um primeiro vislumbre pode ser percebido nas multidões que começam a se mobilizar não reconhecer, junto a seu líder, um erro injusto, produto de um processo sem provas, que agrega uma ferida a mais à convalescente democracia brasileira.
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[1] Evo y Maduro rompen el mutismo regional con apoyos a Lula. (jueves 5 de abril de 2018). Tiempo Argentino: https://www.tiempoar.com.ar/articulo/view/75732/evo-y-maduro-rompen-el-mutismo-regional-con-apoyos-a-lula
[2] GRIMSSON, Alejandro. “La autodestrucción de Brasil”. Revista Anfibia: http://www.revistaanfibia.com/ensayo/la-autodestruccion-de-brasil/
Texto completo en: https://www.lahaine.org/lula-las-clases-sociales-existen
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