CARTA CAPITAL:
Luiz Antonio Cintra
Na madrugada do sábado, 1º de março – à 0h25, segundo o ministro da Defesa colombiano, Juan Manoel Santos –, o comandante Raúl Reyes e uma tropa de guerrilheiros das Farc pernoitavam na província equatoriana de Sucumbíos, a 2 quilômetros da fronteira, quando o acampamento foi arrasado por bombas Cluster lançadas por aviões Super Tucano da Força Aérea Colombiana. Segundo explicaram depois os colombianos, uma ligação telefônica de Reyes, por celular, foi interceptada pela CIA dez dias antes, dando sua localização aproximada e a posição exata do acampamento foi revelada por um informante, provavelmente subornado.
Em seguida, militares colombianos entraram no Equador em dois helicópteros para se apoderar do corpo do comandante e de pelo menos mais um dirigente guerrilheiro, além de computadores e documentos. Deixaram para trás 22 cadáveres e três guerrilheiras feridas por estilhaços de bombas, entre as quais uma estudante de Filosofia mexicana, depois encontrados pelo Exército equatoriano. Entre os mortos estavam Olga Marín, esposa de Reyes, e Julián Conrado, autor de canções de protesto e negociador das Farc.
Raúl Reyes, cujo nome verdadeiro era Luis Edgar Devia Silva, foi militante de esquerda, empregado e sindicalista na Nestlé colombiana até meados dos anos 70, quando vários companheiros foram assassinados, ele mesmo foi ameaçado e passou à guerrilha e à clandestinidade. Era membro do secretariado das Farc (órgão então composto de cinco integrantes, hoje de nove) desde o início dos anos 80.
Desde 1997, como principal negociador e porta-voz da guerrilha em conversações com os EUA, Bogotá e organismos internacionais, era tido como o líder mais importante depois de Manuel Marulanda, o Tiro Fijo (“Tiro Certo”), mas sua importância era mais política do que militar. Ao morrer, foi substituído por “Joaquín Gómez” (Milton Toncel Redondo), da ala militar.
Às 8 da manhã, o presidente equatoriano Rafael Correa foi interrompido durante a gravação de um programa pela ligação do seu par colombiano Álvaro Uribe, que o informou que suas unidades de elite haviam perseguido as Farc através da fronteira e involuntariamente invadiram o território equatoriano. Segundo o governo colombiano, Correa reagiu com tranqüilidade e pediu apenas que Uribe se desculpasse. Durante a manhã e a tarde, o ministro da Defesa colombiano divulgou uma versão sustentando que suas forças haviam sido atacadas do lado equatoriano e, “sem violar o espaço aéreo equatoriano”, realizaram o bombardeio que matou Reyes.
Antes do fim do dia, o governo do Equador investigou o local e ficou claro que os guerrilheiros haviam sido massacrados do ar enquanto dormiam. Foram divulgadas as fotos do estado em que foi deixado o acampamento e as evidências de que o ataque havia sido cuidadosamente planejado. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, denunciou a violação do território do Equador e advertiu que uma ação similar em seu território levaria à guerra.
O presidente colombiano Álvaro Uribe pediu desculpas informais e seu chanceler, Fernando Araújo, anunciou indenizações aos cidadãos equatorianos que pudessem ter sido afetados. Mas, à noite, Correa convocou o embaixador na Colômbia “para consultas”, acusou o país vizinho de violar o direito internacional e seu presidente de lhe mentir abertamente sobre a operação.
Na manhã de domingo, o governo colombiano alegava ter agido em legítima defesa e expressava surpresa pelas “reações cambiantes” de Correa. Hugo Chávez chamou Uribe de “criminoso, mafioso, paramilitar e narcotraficante”, fez 1 minuto de silêncio em homenagem a Reyes, rompeu formalmente relações diplomáticas com Bogotá e enviou dez batalhões à fronteira.
Horas depois, o Equador, insatisfeito com as desculpas colombianas, também rompeu relações diplomáticas, enviou 3,6 mil soldados à província de fronteira, expulsou o embaixador colombiano e pediu reuniões de emergência da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Comunidade Andina (CAN). O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, condenou a ação colombiana e chamou de irmão e companheiro o dirigente abatido, assinalando que era o homem designado pela guerrilha para trabalhar pela paz.
Uribe passou à ofensiva. O diretor da polícia colombiana, Oscar Naranjo, divulgou e-mails e atas supostamente encontrados em notebooks de Raúl Reyes, segundo as quais o guerrilheiro teria se entrevistado com o ministro da Segurança do Equador, Gustavo Larrea, o que mostraria interesse de Correa em oficializar relações com as Farc. Ainda segundo tais notas, os “gringos” pediam a Quito que transmitisse à guerrilha o interesse de conversar, porque o novo presidente será Barack Obama e “não apoiará o Plano Colômbia e o Tratado de Livre Comércio”.
A alegada documentação incluiria mensagem do líder Manuel Marulanda, na qual as Farc diziam-se dispostas a “aportar com nossos modestos conhecimentos a defesa da revolução bolivariana na Venezuela” e menção a uma negociação do ministro venezuelano da Justiça, Ramón Rodríguez Chacín, com as Farc que mencionava algo referido como “300”, interpretado por Naranjo como financiamento de 300 milhões de dólares à guerrilha. E alusão a um agradecimento de Chávez por uma ajuda de 50 mil dólares recebida das Farc em 1992 (quando estava preso) e uma promessa de, em troca, contribuir para a guerrilha com “uns estilingues velhinhos que ele tinha guardados por aí e sabia que ainda funcionavam” – sinônimo de fuzis no jargão “delinqüencial terrorista”, segundo Naranjo.
Para arrematar e convocar às armas os neocons de Washington, o general alegou haver encontrado também informação sobre o envio de drogas ao México e a compra de 700 quilos de cocaína e 50 quilos de urânio pelas Farc, por 1,5 milhão de dólares. Passando de agressora a vítima, Bogotá denunciou uma “aliança armada” entre as Farc e a Venezuela, apresentou a Colômbia como vítima de uma confabulação terrorista das Farc com os governos vizinhos e mesmo de uma iminente agressão com “bombas radioativas”.
Que o governo do Equador conversasse com Reyes é crível. Tem muito mais razões para isso do que a França, que tem feito o mesmo. Três negociadores franceses estavam na Colômbia, a 200 quilômetros do local do ataque, à espera de falar com Reyes – que tentava obter uma audiência com o próprio Sarkozy –, quando foram advertidos pelo governo de Uribe, a par da negociação, para não se aproximarem do ponto de encontro.
Na prática, a guerrilha controla a maior parte da fronteira entre os dois países – há algum tempo, o ministro da Defesa do Equador, Miguel Carvajal, declarara que seu país não se limita ao norte com a Colômbia e sim com as Farc. Segundo a Acnur, comissão de refugiados da ONU, o êxodo de colombianos para o Equador é uma das piores tragédias humanitárias nas Américas.
Desde sua posse, Rafael Correa negou-se (como os demais governos latino-americanos) a qualificar as Farc de terroristas e apoiou a proposta de Chávez de considerá-las uma força insurgente, com direito a diplomacia. Faz sentido que, como Chávez, Correa desejasse se prestigiar como mediador na troca de reféns e outras negociações com a guerrilha. De fato, ele declarou que o ataque colombiano frustrou a libertação de Ingrid Betancourt e outros 11 reféns que ia se concretizar em março, no território equatoriano. Daí a lhe atribuir apoio ativo às Farc vai uma grande distância. No ano passado, o Equador destruiu 47 acampamentos móveis da guerrilha em seu território.
As acusações de Naranjo soam pouco convincentes, principalmente depois que a Colômbia divulgou uma versão sobre a incursão que se mostrou mentirosa. Assim como papel, um disco rígido de computador aceita tudo, principalmente das mãos de serviços de inteligência treinados pela CIA (se não da própria). Dificilmente tais provas seriam aceitáveis em um tribunal ou para uma acusação pública, quanto mais em um contexto de agressão internacional. Mesmo que os arquivos fossem autênticos, podiam indicar apenas aquilo em que Reyes e a cúpula da guerrilha gostariam que seus liderados acreditassem.
Parece muito plausível que vários desses arquivos tenham sido forjados em retaliação à disposição do Equador de desmentir Uribe, bem como em resposta às ameaças venezuelanas e numa tentativa de erguer uma cortina de fumaça para disfarçar sua agressão, ante a reação negativa da maior parte do mundo. A história do urânio soa particularmente inverossímil. Um grupo guerrilheiro como as Farc não poderia se dar ao luxo de atrair uma condenação universal e arruinar sua reputação entre simpatizantes com o uso de armas radioativas.
Computador por computador, o ministro venezuelano Rodríguez alega ter registros, em máquina tomada a Wilber Varela, traficante colombiano morto em 31 de janeiro na Venezuela (e responsável por 70% da cocaína colombiana vendida nos EUA), de que o general Naranjo participa do narcotráfico e o ministro da Defesa colombiano foi subornado para nomeá-lo. Juan David Naranjo, irmão de Oscar, está preso na Alemanha desde 2006, depois de tentar vender 35 quilos de cocaína a policiais disfarçados.
Na segunda-feira 3, a presidente Michelle Bachelet, do Chile, condenou a ação colombiana em entrevista à tevê: “Não podemos estar de acordo com que não se respeitem as fronteiras e lamentamos que o Equador se tenha sentido agredido”. Advertiu sobre “a extrema delicadeza” do fato de “que se possa atravessá-las por qualquer objetivo, legítimo ou ilegítimo”. O paraguaio Nicanor Duarte e Evo Morales, da Bolívia, se manifestaram em termos semelhantes.
O Peru, apesar de condenar a intromissão de Chávez, posicionou-se ao lado da parte ofendida ao considerar que a incursão violou as normas internacionais e cobrar desculpas mais claras e enfáticas da Colômbia.
O Brasil, por meio do chanceler Celso Amorim, considerou “gravíssima” a violação territorial e cobrou da Colômbia um pedido de desculpas formal e sem condições, além de garantias de que não voltará a invadir o país vizinho. Rafael Correa inicialmente acrescentou, a essas duas condições, a exigência de que a Colômbia reconhecesse que os supostos arquivos do computador de Reyes são produto de uma montagem.
Brasília também se posicionou contra a mediação da União Européia, proposta pela Colômbia, e juntou-se ao Chile e à Argentina por uma reunião da OEA. Jorge Taiana, o chanceler argentino, rechaçou, em nome de seu governo, “qualquer forma de violação da soberania territorial, princípio inviolável do direito internacional”. Na América do Sul, a Colômbia ficou totalmente isolada, ainda que os vizinhos procurem também ignorar o belicismo de Chávez.
Não que os europeus estejam dispostos a elogiar Bogotá: o chanceler francês, Bernard Kouchner, lamentou a morte do negociador Reyes, o contato por meio do qual Paris esperava obter a libertação da franco-colombiana Ingrid Betancourt. O chanceler italiano, Massimo D’Alema, também se declarou perplexo e preocupado com a agressão colombiana.
Se a incursão “dividiu o mundo”, como disseram alguns jornais, foi em partes muito desiguais. O único governo a respaldar explicitamente a ação de Bogotá foi o de Washington – de cujos “planos genocidas”, segundo Fidel Castro, a incursão faria parte –, com apoio de Hillary Clinton, para a qual a Colômbia “tem todo o direito de se defender de organizações terroristas”. A doutrina da “guerra preventiva” de Bush júnior é compartilhada pela oposição, ainda que possam discordar nas minúcias de sua aplicação.
Na terça-feira, Uribe escalou a guerra de propaganda dizendo que denunciaria Hugo Chávez à Corte Penal Internacional para “explicar o presumido delito de financiamento de genocidas” e as Farc à Comissão de Desarmamento da ONU pela suposta intenção de adquirir urânio.
Para defender a posição equatoriana, Correa viajou ao Peru e Brasil (dia 4), Venezuela e Panamá (dias 5 e 6) e República Dominicana, onde levará a questão à cúpula presidencial do Grupo do Rio em Santo Domingo. Nessa reunião, marcada antes da crise, deveriam participar todos os chefes de Estado da América Latina, mas ficarão de fora os da Colômbia, Venezuela, Bolívia (às voltas com a disputa constitucional com a oposição) e Nicarágua.
Hugo Chávez fechou a fronteira venezuelana a caminhões colombianos, apesar de esses fornecerem grande parte dos alimentos importados por seu país. Se prosseguir o bloqueio, a Venezuela precisará de importações emergenciais, provavelmente do Brasil.
Na reunião da OEA, na terça-feira à tarde, Equador e Venezuela pediram a condenação da Colômbia e esta insistiu em defender a legitimidade do “ataque preventivo”, e não aceitar uma resolução que falasse em “condenação” ou “investigação” de suas ações. Depois de dois dias de discussão, chegou-se a um texto para reafirmar que não é aceitável violar fronteiras por “qualquer motivo e mesmo de maneira temporária”. Foi criada também uma comissão para examinar o local, que deverá subsidiar uma reunião de chanceleres em Washington, em 17 de março. Não se chegou a condenar explicitamente a Colômbia, mas ficou claro o seu isolamento e a rejeição da tese da legitimidade do “ataque preventivo”.
O governo colombiano quis se apoiar nas resoluções da ONU que respaldaram a ofensiva dos EUA no Afeganistão, em 2001. Um absurdo perante o Direito internacional, pois tais decisões autorizaram uma ação específica ante uma circunstância excepcional. Não liberaram governos para invadir países estrangeiros para combater o que quisessem rotular de terrorismo como e quando bem entendessem. Mas o discurso de Bogotá mostra a que ponto os precedentes abertos pelos EUA e por Israel desgastam as bases jurídicas de uma comunidade internacional organizada sobre princípios racionais.
Na Colômbia, segundo a interpretação do governo francês, diz o jornal argentino Página/12, houve um confronto entre uma linha negociadora, representada pelo Comissário para a Paz Luis Carlos Restrepo e a linha dura, constituída pelas Forças Armadas e de Segurança, que não admite solução política – muito menos mediada por Chávez e Correa – e defende a continuação da luta até a liquidação total da guerrilha. Com ajuda da CIA, sabotou a possibilidade de acordo ao matar o negociador das Farc.
Uribe, abalado por sucessivos escândalos sobre assassinatos de oposicionistas e as relações de seu governo com paramilitares e traficantes, apostou no aplauso da opinião pública colombiana, informada por jornais conservadores e ansiosa pelo fim da guerra civil, e no apoio dos EUA, que lhe permitiria ignorar os países vizinhos.
A Correa, ainda em processo de consolidar seu governo e obter da Assembléia Constituinte um resultado adequado a seus projetos, não interessava um conflito internacional, mas, ante a evidência de uma violação planejada de seu território, não pôde fechar os olhos.
A Chávez, que luta para liderar o continente e abafar suas próprias dissensões internas, convém demonstrar força e decisão e unir seu povo e aliados contra um inimigo externo, além de defender as negociações com as Farc e prevenir uma desmoralizante incursão em seu próprio território. Mas dificilmente lhe interessa chegar às vias de fato. A Venezuela possui mais armas pesadas, aviões de guerra e tanques, mas a Colômbia tem um Exército maior, afiado por décadas de guerra civil. O desfecho de um conflito aberto seria duvidoso. Tanto poderia favorecer as Farc quanto dar aos EUA o pretexto para intervir a favor de Uribe e dos interesses eleitorais republicanos.
Mas se os ataques de Hugo Chávez, enquanto se limitarem a insultos verbais, são indesejáveis e condenáveis, a ação violenta de Bogotá é ilegal e indefensável. Na ausência de guerra aberta, Uribe pode até ganhar prestígio interno a curto prazo, mas seu país perde no cenário internacional, ao passo que a guerrilha conquista simpatias e oportunidades. Todos os países sul-americanos, sem exceção, condenaram a Colômbia, bem como a maioria dos países europeus interessados nas negociações.
Mesmo a conservadora Alemanha, de Angela Merkel, e os países latino-americanos mais próximos dos EUA, México, Guatemala, Costa Rica e El Salvador, abstiveram-se de apoiar a incursão colombiana. O próprio Felipe Calderón, presidente do México, deu razão ao Equador em conversa telefônica, segundo Correa. Quanto ao apoio dos EUA, não se sabe se continuará o mesmo após as próximas eleições, como os próprios oficiais colombianos parecem recear.