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Como o neoliberalismo privatizou a agenda da esquerda
"Se não é possível vencer teu inimigo, una-te a ele", diz um refrão herdado pelo poder desde os tempos antigos. Dentro do grande retrocesso histórico, que será lembrado pelos antropólogos do futuro, como o neoliberalismo, há poucas coisas resgatáveis. Quando o sistema mundial capitalista conseguiu a destruição de seu principal inimigo, à União Soviética, e a seus povos com toda sua beleza humana e uma total ingenuidade política, foi vendida a eles a falácia da "economia social do mercado" e o brutal laboratório pinochetista chileno, graças aos contos de fadas midiáticos se converteu para os governos no principal modelo a seguir, o grande projeto humanista de esquerda mundial que foi praticamente nocauteado.
Mais além de uma outra resistência heróica aqui ou ali, o neoliberalismo se apoderou de tudo, e mais alem do crime econômico, converteu-se na única lógica do desenvolvimento, para assegurar a irreversibilidade de seu triunfo, ele se dedicou a acabar com as culturas e as memórias dos povos, convertendo a educação, a arte e o pensamento primeiro numa mercadoria e logo após eliminá-los porque desnecessários.
Para poder nos dominar bem e sem riscos, havia que idiotizar-nos.
Mas no umbral entre nossos séculos sucedeu algo mais. Se nas décadas anteriores, dentro da competência ideológica de dois sistemas, que não foi outra coisa que uma guerra mundial de uma cambiante intensidade, híbrida, como diriam agora, o capitalismo todavia era produtivo, ainda gerava uma aceitável distribuição dos recuros nos países metropolitanos, e apesar da costumeira e brutal exploração dos recursos de sua enorme periferia, mantinha um atrativo para uma boa parte da população, por níveis de bem estar material e liberdades individuais, pelo menos nos países mais ricos. As pessoas minimamente, em teoria, podia optar pelas vantagens e desvantagens de ambos os sistemas.
Com o desaparecimento dos "socialismos reais" na Europa, perdeu-se um dos principais estímulos da lógica capitalista que é a competição, e como a opção socialista deixou de aparecer como uma possibilidade histórica e ameaça para os poderes do Ocidente, é lógico que as conquistas sociais até nos países mais ricos foram se reduzindo, abrindo o caminho para uma exploração sem limites como o sonho dos defensores do "fim da história". Ao mesmo tempo, junto à revolução digital, as especulações financeiras internacionais de longe ganharam a competição com os capitais nacionais produtivos.
Gerar bens reais se tornou cada vez menos rentável e com o desenvolvimento do manejo da imagem e da psicologia humana, a televisão, internet e redes sociais em mãos dos de sempre, só num par de décadas serviram a nossas mesas um mundo paralelo, uma fuga perfeita da realidade insuportável, com uma promessa de mundo feliz para os que se comportarem bem.
Os políticos tradicionais, os homens de Estado, rapidamente foram trocados pelos gerentes tecnocratas a serviço das grandes corporações e cujo único requisito é não saber distinguir entre uma empresa e um país, que além disso já não é praticamente o mesmo. Para assegurar seu triunfo, ao neolibealismo restavam somente as últimas quatro tarefas: a primeira, a destruição da educação pública, de onde no mundo anterior os cidadãos aprendiam as coisas básicas acerca deste mundo e que tradicionalmente foram os focos da dissidência social e do pensamento crítico; a segunda, acabar com a comunicação direta entre os seres humanos, rompendo o tecido social tradicional, uma função que nas grandes cidades cumpriram as redes sociais, com essa ilusão de unir, desunindo e viciados; a terceira, muito relacionada com a anterior, que é a destruição de nossas culturas locais, gerando uma nuvem mundial cosmopolita de onde consumiremos somente um tipo de produção cultural criada e controlada por eles, algo que define os valores, os modelos e os hábitos sociais das gerações que virão, permitindo assim manipular-nos de uma forma simplificada e uniforme. E a última, quarta tarefa, era tal vez a mais delicada: O que fazer com os que dizem ser da esquerda, supondo que, com suas lutas, organizações, conhecimentos e olhar crítico desde os tempos imemoráveis poderiam impedir o cumprimento desses planos?
O grande computador que é o coração e o cérebro tecnocrata do sistema neoliberal deu uma resposta muito simples: o roubo, que é a especialidade e a expertise do sistema, que a estas alturas não pode oferecer ao ser humano absolutamente nada novo, nem sequer uma ilusão. E enquanto nossos dogmáticos permaneciam em sua eterna e cada vez mais estéril discussão sobre Trotsky, Stalin e Mao, o sistema neoliberal se apropriou da agenda da esquerda, de uma vez, privatizando todo o pacote de absolutamente todas as lutas de gerações e gerações.
Nos últimos anos de sua vida, Fidel Castro nos advertia que a única coisa que poderia fazer fracassar a humanidade em sua luta contra o capitalismo seria a lumpenização que esta produz em todas as camadas sociais. Uma lumpenização que nos desumaniza e nos impede de compreender o sentido desta luta.
Esta lumpenização foi o objetivo das políticas educativas e culturais das últimas décadas, quando desde a escola as matérias como história e filosofia foram declaradas supérfluas e a televisão nos acostumava ao "fast food" intelectual, sempre alinhado com certas doses de veneno ideológico anticomunista.
Como o adversário é muito profissional, não vimos o momento do roubo. Só amanhecemos dando-nos conta que nossas bandeiras há muito tempo já estavam em mãos inimigas. Nossa luta histórica, pelos direitos das mulheres é convertida em feminismo agressivo, ameaçando o mundo com a guerra dos sexos, a defesa da dignidade e dos direitos das minorias sexuais se converteu num show indigno e autoritário que poderia ser a cátedra da hipocrisia e desrespeito, a luta vital por defender nosso planeta da voracidade do sistema é encabeçada e promovida por corporações verdes, dispostas a investir milhões em salvação de qualquer baratinha ou girino, menos na do ser humano.
A imposição de oxímoros tipo "economia social do mercado", "desenvolvimento capitalista sustentável" ou "as guerras humanitárias" continuam decompondo o cérebro dos estimados espectadores, que já não tem sequer os elementos mais básicos para armar a realidade fragmentada dentro da enorme cratera gerada pelo cometa neoliberal que chocou-se com nosso planeta. As verdadeiras lutas pelos direitos, antes sempre uniam as pessoas. As lutas atuais, manipuladas pelo sistema, nos desunem. Declarando a tolerância, se promove a hipocrisia, a desconfiança e o ódio.
Agora dá risos recordar nossa crítica das sociedades socialistas por seus duplos padrões, que alguma vez nos indignaram tanto. Os padrões de agora montados sobre a areia movediça do relativismo, a ignorância e sobretudo a arrogância, promovidos pelo sistema ocidental, são múltiplos. Estão cheios de contradições que ninguém vê, já que não sabemos olhar com nossos próprios olhos.
Neste grande reinicio nada está oculto, a manipulação, o manejo e o autoritarismo estão totalmente abertos, só que ninguém quer ver, por medo, por desconforto ou simplesmente porque não sabe distinguir as formas e as cores.
As massas indignadas dispostas a sair às ruas em diferentes lugares do planeta, milhares de jovens com valor e sacrifício dispostos a lutar por um mundo mais justo não sabem que o sistema em seu cálculo maquiavélico já tem preparado novos Boric ou Zelenski, para trocando-os nada mude, porque todas as lutas "por tudo que é do bem contra todo o mal" promovidas pelo sistema e seus porta-vozes, sempre são uma armadilha para abrir a tampa,, retirar algum vapor e devolver aos povos deixando-os dentro da mesma panela.
Devemos recordar que as lutas culturais e éticas não podem não ser parte de um projeto de mudança política muito mais profundo. E este projeto é impossível sem uma organização cidadã com seu pensamento próprio, crítico, autônomo e respeituoso com o conhecimento humano acumulado. Este conhecimento crítico não pode ser trocado por memes, por 'hashtags' e pelos slogans radicais. Em caso contrário, constantemente estaremos devolvendo-nos ao mesmo ponto da ressaca social, de onde os donos do mundo sempre terão seus diferentes gerentes, segundo o gosto do cliente, sejam conservadores, liberais, socialistas ou capitalistas.
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