sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Crime perfeito



Coluna de Juremir Machado da Silva, publicada no Correio do Povo de 15.02.2008.

Continuo a minha luta napoleônica para desvendar os paradoxos do sistema universitário público brasileiro. Trata-se do crime perfeito. Os mais ricos ficam com a maioria das vagas dos cursos mais valorizados. Eles têm o álibi ideal: o mérito. Mas por que eles são os melhores e não outros? A resposta é uma auto-absolvição automática das elites majoritariamente brancas: nenhum indivíduo isolado pode ser penalizado por acontecimentos históricos. A culpa coletiva e estrutural do passado é rechaçada em nome dos direitos individuais do presente. Os benefícios são mantidos. No paradoxo do crime perfeito a sociedade, incluindo as vítimas, seria beneficiada pela meritocracia, de valor universal e indiscutível.
Nesse crime perfeito, os corpos desaparecem por proliferação. É o efeito denunciado por Jean Baudrillard. São tantos os alijados que eles não têm rosto nem representam um problema particular a exemplo de um indivíduo específico que tenha perdido a sua vaga numa universidade em função de uma política de cotas. Quando os corpos permanecem vivos e se multiplicam, não há cadáver. Por extensão, não há crime. A esquerda é cúmplice desse crime perfeito. Por princípio, ela não pode defender que os ricos sejam obrigados a pagar pelos seus estudos, pois teme com isso favorecer a privatização das universidades públicas. Limita-se a pregar a universalização do ensino público, algo que a elite dominante aceita e empurra para o futuro. É o cobertor curto: se os ricos tiverem de pagar, saem da universidade pública, que corre o risco de se tornar uma favela. Se ficam, não pagam. O paradoxo da esquerda é esperar que a elite altere uma situação que não a incomoda e que lhe traria prejuízos: arcar com a conta inteira.
A perfeição desse crime é tamanha que a esquerda acaba por ajudar a sustentar cursos de universidade pública para ricos, enquanto a universalização não vem, com base num critério, o mérito, pelo qual o privilégio se transforma em direito adquirido. A conivência da esquerda vem de uma chantagem. Sigamos novamente esta pista de um sistema em que os ricos paguem e os pobres não. O contra-argumento imediato é de que se instalaria uma universidade para ricos e outra para pobres, como acontece em boa parte do ensino básico. Por que não se poderá manter um ensino público para pobres do mesmo nível do ensino privado ou público para ricos? Porque sem o interesse dos ricos, cujo poder de pressão e sedução é maior, os governos não teriam como bancar as instituições dos pobres. Sem charme nem recursos, elas seriam desvalorizadas no mercado de trabalho. Golpe fatal. Se os impostos não eliminam pedágios, não seria o caso de impor taxas gradativas nas universidades públicas?
Os ricos adoram dizer que não existe almoço gratuito. Salvo nas universidades públicas, onde estudam sem pagar nos cursos mais procurados. No crime perfeito, não há culpado, a vítima teria vantagens, o cadáver sai andando, o acusador sente-se na obrigação estratégica de não reclamar certas penalidades e a reprodução infinita do ato é considerada uma maneira de evitar um mal maior. Tudo se justifica. Qualquer tentativa das vítimas de virar o jogo resulta num crime imperfeito, passível de condenação imediata. No crime perfeito, o combate à desigualdade concreta é um atentado à igualdade formal. O refém é incitado a contrair a síndrome de Estocolmo.

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