quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Os burocratas do horror

A cena foi “uma das mais duras e vergonhosas vistas em Israel na história recente”, no dizer de um editorial do jornal Haaretz.

Os meninos palestinos Ahmed Samut, de dois anos, e Sausan Jaafari, de nove, foram com os pais ao posto de fronteira de Erez, na última terça-feira. As duas famílias de Gaza precisavam entrar em Israel porque os meninos, que sofrem de gravíssimos problemas cardíacos, tinham cirurgia marcada num hospital israelense – que oferecera a operação de graça para eles. Numa decisão absolutamente desumana, as autoridades no posto impediram que os pais das crianças entrassem em Israel, por serem jovens demais – perfil característico dos terroristas palestinos, segundo os critérios israelenses. Apenas Sausan e Ahmed tiveram permissão para passar.

Os meninos foram tirados dos braços de seus pais e tiveram de cruzar sozinhos o posto de fronteira, situação que causou estupor em Israel. O Haaretz chamou essas normas de “decreto do mal”, por razões que a história acima deixa mais do que óbvias. “A imagem das crianças andando sozinhas em seu caminho para a apavorante cirurgia deve reverberar de uma ponta do país à outra. Deve perturbar todos os israelenses, não importa sua coloração política. Todos os pais de Israel devem se colocar no lugar desses desafortunados pais”, disse o jornal.

Além disso, o fato de um hospital israelense oferecer a cirurgia para os meninos palestinos não deveria ser motivo de “orgulho desmedido” por parte de Israel, afirma o editorial. “No atual estágio do cerco imposto a Gaza, Israel tem enorme responsabilidade moral pelo bem-estar e a saúde dos sitiados.”

E o texto do jornal faz uma crítica categórica ao principal argumento de Israel quando se trata de medidas duras contra os palestinos: a segurança. “Israel está tomando o nome da segurança em vão. Nenhuma consideração dessa natureza desculpa o fechamento de fronteiras para os pais de crianças doentes, que não são suspeitos de nada e que não têm permissão para entrar simplesmente porque são jovens. A administração tem instrumentos suficientes para abrir exceções (...). Os pais de Sausan e Ahmed têm o direito humano básico de acompanhar seus filhos no mais difícil momento deles.”

Esse episódio pode levar a perturbadoras conclusões. A principal delas é que a burocracia israelense, no que diz respeito aos palestinos, está tomada daquilo que Hannah Arendt qualificou de “banalidade do mal”, isto é, quando os valores morais estão de tal maneira invertidos que fazer o mal torna-se a norma a ser seguida, e não a exceção a ser combatida. Os burocratas israelenses que determinaram o absurdo da situação de Sausan e Ahmed provavelmente não acreditam ter feito nada de mais, uma vez que humilhar os palestinos se tornou a lei, e não humilhá-los significaria ir contra a lei. Diante desse contexto, é preciso dizer com todas as letras: a conciliação entre israelenses e palestinos depende da renúncia dos palestinos ao terror, mas passa, também, por uma revisão moral por parte de Israel, cada vez mais isolado em seu imenso castelo de certezas.


Do Marcos Guterman, no Estadão Online, via Weblog do Pedro Dória.

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