sexta-feira, 21 de março de 2008

Palestina ao sul do Equador


CARTA CAPITAL:

O burburinho toma conta da sala abafada. O cenário é o Centro Cultural Árabe-Palestino, em Porto Alegre. O tom de voz indica que os homens estão embravecidos, muito embravecidos. Um deles é Ziyad Shahadeh, 32 anos, cabeleireiro de profissão, sem pátria por condição. Há três meses, procura trabalho usando como arma as poucas palavras que aprendeu a falar em português. A bem da verdade, ele chegou a arrumar emprego em um salão de beleza. “Não tinha salário fixo, ganhava por cabeça.” Só não contava com a mudança de estação. No verão, boa parte da clientela mudou-se provisoriamente para o litoral. Ziyad não teve tempo de gozar férias. Com a diminuição das cabeleiras a serem aparadas, foi dispensado menos de 30 dias depois de afiar a tesoura. O ócio só aumentou a saudade dos pais e sete irmãos que ficaram no Oriente Médio. Os cunhados estão sabe lá onde. Não é de estranhar que a maior fatia dos R$ 350 que recebe de ajuda de custo da ONU se esvaia na corrida à banca de jornal para comprar cartões telefônicos. “Com R$ 30, falo menos de cinco minutos.”

Com outros nove muçulmanos sunitas com idade entre 22 e 60 anos, Zyad vive em um condomínio de Sapucaia do Sul, cidade próxima a Porto Alegre. Faz parte de um grupo de pouco mais de 100 palestinos nascidos no Iraque que foram resgatados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) do campo de Ruweished, localizado na Jordânia, entre setembro e novembro do ano passado. Boa parte deles, 52, abrigou-se no Rio Grande do Sul. Antes da invasão americana, em 2003, os sunitas viviam sossegados sob a proteção do governo de Saddam Husseim, executado na forca em dezembro de 2006. Com a queda de Bagdá, passaram a ser atacados e depois mortos pelos xiitas, ávidos por vingança após duas décadas de perseguição. A rota de fuga os conduziu até a Jordânia, que já havia recebido milhares de iraquianos depois da Guerra do Golfo, em 1991.

Após recusa de Canadá, Austrália, Chile e países escandinavos, o Brasil aceitou assentar os refugiados de Ruweished. No Rio Grande do Sul, enquanto os casados espalharam-se pelo interior com suas famílias, os dez homens solteiros estabeleceram-se em Sapucaia do Sul. Um deles faz tratamento contra o alcoolismo em uma clinica na área rural do município. Quando desembarcaram, estavam-lhes destinadas moradias coletivas. Mas eles bateram pé. Exigiram apartamentos individuais, e foram atendidos. Além da ajuda monetária, a ONU paga aluguel, água, luz, transporte e aulas de português.

Mas eles não parecem nada satisfeitos. Na reunião com os representantes da ONU, a principal queixa é a de não ver cumprida suposta promessa das Nações Unidas de reunir no Brasil pais, mães, filhos, netos, irmãos, cunhados, tios, genros e demais parentes que ficaram no Oriente Médio. Longe do clã, alegam não ter cabeça para procurar trabalho ou aprender português. “Lá, vivíamos uma tragédia. Aqui, ficou pior. Pelo menos, estávamos próximos dos familiares e agora nem sabemos o que poderá acontecer com eles”, diz Ziyad. A promessa de reunião familiar na nova terra teria sido feita quando ainda estavam no campo da Jordânia, mas não há documento que comprove. Karin Wapechowski, da Associação Padre Antônio Vieira (ASAV), coordenadora do projeto de reassentamento no sul do país, joga um balde de água fria: “Não dá para pensar em trazer as famílias enquanto eles não demonstrarem que podem sustentá-las aqui no Brasil”.

Longe disso, nenhum dos dez palestinos refugiados em Sapucaia do Sul tem trabalho atualmente. Na época do Natal, alguns dos refugiados até conseguiram ocupação em lojas de patrícios, no comércio popular da área central da capital gaúcha. Mas quando passou a festa cristã, as lojas dispensaram seus empregados temporários. Como se não bastasse a retração do mercado pós-natalino, a mão de obra tem lá suas dificuldades de adaptação ao ritmo capitalista. Os patrões reclamaram que o pessoal não cumpria horário e faltava seguidamente ao trabalho. “Eles estão ainda impactados com a transição para uma vida normal de qualquer trabalhador”, justifica Karin.

Não por acaso, um exemplar do Al Qabas (diário publicado na cidade do Kuwait), com data de agosto de 2007, atirado no tapete do Centro Cultural Árabe-Palestino, é outra arma para matar a saudade. É que a falta de ânimo afeta também as aulas de português com professor particular que a ONU lhes concede. O alfaiate Mohammad Ibrahim Dawaymeh, 24 anos, que deixou para trás o pai inválido, duas irmãs casadas com maridos desaparecidos, cada uma com três crianças, admite: “Não dá para conseguir emprego sem falar o português”.

Sem dúvida, nenhum deles terá chance de escrever como Machado de Assis ou discursar como Ruy Barbosa. As aulas temáticas servem mais para ajudá-los a se virar em tarefas prosaicas como pegar ônibus, ir ao mercado e voltar para casa. Mesmo assim, a freqüência deixa a desejar. Em parte devido à disparidade de conhecimento. Alguns não decifraram ainda sequer a linguagem escrita do idioma árabe. Não é o caso de Youssef Monsour Al-Manasir, de 60 anos, que chegou a cursar Letras na Universidade de Bagdá. Ele se apresenta como artista plástico. Entre os mais novos, a busca é por profissões conectadas com o mundo global. Issam Ali Hassam, de 25, planeja fazer curso de computação. “Cheguei a me preparar para a faculdade em Bagdá, mas não deu tempo. Tive que fugir.”

Uma prova de que a vida no Brasil ainda não seduziu os refugiados de Sapucaia do Sul é que eles quase não saem de casa. No campo de Ruweished, viviam em tendas claustrofóbicas, sem janelas. Lá fora, fazia calor demais durante o dia. À noite, o frio era de renguear cusco (cão vira-lata), como diz o gaúcho. Sem mencionar as tempestades de areia e, principalmente, a vizinhança hostil – cobras, aranhas e escorpiões. O contato com o mundo exterior se dava através de televisão por satélite e celulares pré-pagos. O jeito era gastar o tempo matutando acerca da vida, jogando cartas e fumando cigarros, muitos cigarros. O vício até que diminuiu por motivo de força maior, uma vez que o preço da nicotina no Brasil é mais um dos reclames do grupo palestino. “É fumar ou comer”, resigna-se Ziyad, resistindo à tentação de puxar o maço de dentro do bolso.

No caso das famílias assentadas no interior gaúcho, o hábito de não se aventurar fora da tenda persiste ainda que a paisagem tenha mudado e a moradia não seja mais tão asfixiante. Mulheres e idosos, principalmente, relutam atravessar a porta da rua. Às vezes, buscam no passado motivos para isso. Reclamam de dores no peito, tontura, mal-estar. Levados até o posto médico, nada é constatado. Talvez porque ainda não tenham esquecido as regras do campo de refugiados, lugar que não podiam abandonar, a menos que fosse por motivo de saúde, e ainda assim com escolta policial. No Brasil, a porta está aberta. Mas é como se ainda não tivessem colocado os pés no campo da liberdade.

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