terça-feira, 30 de abril de 2019
Por que as mulheres sábias são desafortunadas?
Fernán Caballero foi na realidade uma mulher disfarçada sob um pseudônimo
BERNA GONZÁLEZ HARBOUR
Madrid 5 ABR 2019 - 10:21 CEST
Uma leitora sustenta a biografia de Fernán Caballero. JENIFER SANTARÉN
Alguns autores devem se lamentar atualmente de não serem autoras para poder receber algo mais da atenção em tempos em que as editoras buscam eminentemente vozes de mulher ante o tsunami feminista. Mas ao longo da história foi o contrário: muitas mulheres se viram obrigadas a adotar pseudônimos masculinos para conseguir publicar e abrir-se logo ao mundo editorial. Foi o caso de Cecília Böhl de Faber e Ruiz de Larrea (1796-1877), que escolheu o nome de Fernán Caballero e com ele conseguiu converter-se "no autor espanhol" mais traduzido e lido na Europa. O crítico José Fernandez Montesinos lhe atribui o início da novela espanhola contemporânea.
E não foi precisamente graças a seu pai o impulso que adquiriu esta espanhola filha de alemão e da região de Cádiz com uma relação complicada que deixou formalizada em cartas que voavam como balas entre a Alemanha e Espanha quando se separaram. Ele explicava assim as causas: "as humilhações que a sorte me impõe pelas extravagâncias de minha mulher. Se minha mulher tem tido a inconcebível loucura de imaginar-se que tal é a hora necessária para minha felicidade, está atrozmente enganada. Se não quer ser outra, tem agido muito bem em ir-se; quando ela mudar, tornar-se humilde, dócil, obediente, complacente e econômica, será recebida por mim com os braços abertos". Escreveu em 1805, segundo consta a biografia escrita por Milagros Fernández Poza para a coleção Mulheres na História.
Essa mãe que não quis ser outra, nem dócil, nem obediente, nem econômica, pelo contrário tentou inculcar em seus filhos e filhas sem distinção o amor à literatura. Sobre isso discordaram ex-marido e ex-mulher num diálogo de surdos que as cartas refletiam como testemunho do machismo estruturado que tentava subjugar então à mulher: "A esfera intelectual não foi feita para as mulheres", escrevia o pai a sua ex-mulher. "Deus quer que o amor e o sentimento sejam seu elemento. Por que são desafortunadas todas as mulheres sábias? Por que são detestadas? Por que são ridicularizadas, pelo menos? Não se encontra todavia uma mulher a quem a mais pequena superioridade intelectual não produza alguma deficiência moral. O dia que forem queimados teus 'Direitos da mulher' será para mim um grande dia".
Em carta com data de 14 de setembro de 1806, ela lhe responde: "Retirando das mulheres a capacidade de julgar por si, de formarem-se seus princípios e caráter, se as fazem escravas de suas paixões, e quando as quiserem subordinar à razão do homem -como se a razão e a alma tivesse sexo-, e se aquele homem destinado a guiá-las não tem razão... que farão as pobres então?
Sua mãe não quis ser outra, como lhe pedia seu pai. Cecília não foi outra senão outro, pelo menos de nome. Um disfarce eficaz em forma de pseudônimo que adotou para levar adiante sua carreira. Tudo mudou e as estantes estão hoje cheias de autoras mas, felizmente, nenhum homem necessita pseudônimo de mulher.
https://elpais.com/cultura/2019/04/05/actualidad/1554451707_966586.html
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